(Romanos 4:1-25)
É bem provável que os cristãos judeus em Roma tenham perguntado mais que depressa:
"Qual é a relação entre essa doutrina da justificação pela fé a nossa história? Você diz que a Lei e os Profetas dão testemunho dessa doutrina. Mas e quanto a Abraão?"
Paulo aceitou o desafio e explicou de que maneira Abraão havia sido salvo. Abraão era chamado de "nosso pai", referindo-se especialmente à descendência natural e física dos judeus. Mas, em Romanos 4:11, Abraão também é chamado de "pai de todos os que crêem", ou seja, de todos que aceitaram a Cristo (ver Gl 3:1-18). Paulo apresenta três fatos importantes sobre a salvação de Abraão que comprovam como a experiência espiritual do patriarca foi semelhante àquela dos cristãos de hoje.
Foi justificado pela fé, e não por obras (w. 1-8). Paulo chamou duas testemunhas para corroborar essa declaração: Abraão (Gn 15:6) e Davi (SI 32:1, 2). Em Romanos 4:1-3, Paulo trata da experiência de Abraão conforme o relato de Gênesis 15: Abraão havia derrotado os reis (Gn 14) e se perguntava se voltariam para lutar. Deus lhe apareceu em uma visão e disse: "Não temas, Abraão, eu sou o teu escudo, e o teu galardão será sobremodo grande" (Gn 15:1). No entanto, o maior desejo de Abraão era ter um herdeiro. Deus havia lhe prometido um filho, mas até então não havia cumprido essa promessa.
Foi nessa ocasião que Deus lhe disse para olhar para as estrelas e prometeu: "Será assim a tua posteridade [descendência]". E Abraão creu na promessa de Deus. O termo hebraico traduzido como crer significa "dizer amém". Sua fé lhe foi imputada para justiça.
O termo imputar em Romanos 4:3 é uma palavra grega que significa "colocar na conta de alguém, depositar" e é um termo bancário. O mesmo verbo é usado onze vezes neste capítulo e traduzido como "considerar" (Rm 4:4), "imputar" (Rm 4:8, 9, 11, 22, 24), "atribuir" (Rm 4:6, 10) e "levar em conta" (Rm 4:23). Quando uma pessoa trabalha, recebe um salário, e esse dinheiro é depositado em sua conta. Mas Abraão não trabalhou para merecer a salvação; simplesmente creu na Palavra de Deus. Foi Jesus Cristo quem realizou a obra na cruz, e sua justiça foi colocada na conta de Abraão.
Romanos 4:5 faz uma declaração espantosa: Deus justifica o ímpio! A Lei diz "porque não justificarei o ímpio" (Êx 23:7). A ordem para o juiz do Antigo Testamento era que" [justificasse] ao justo e [condenasse] ao culpado" (Dt 25:1). Quando Salomão consagrou o templo, pediu que Deus condenasse os perversos e justificasse os justos (1 Rs 8:31, 32). Mas Deus justifica os ímpios - pois não há justos para serem justificados! Ele coloca nossos pecados na conta de Cristo e "deposita" a justiça de Cristo em nossa conta.
Em Romanos 4:6-8, Paulo usa Davi como testemunha, citando um dos salmos de confissão do rei depois de seu pecado terrível com Bate-Seba (SI 32:1, 2). Davi faz duas declarações surpreendes: (1) Deus perdoa os pecados e atribui justiça sem obras; (2) Deus não imputa nossos pecados. Em outras palavras, uma vez que somos justificados, nosso registro contém somente a justiça perfeita de Cristo e não mais os nossos pecados. Sem dúvida, os cristãos pecam, e esses pecados precisam ser perdoados, a fim de que tenhamos comunhão com Deus (1 Jo 1:5-7); mas esses pecados não são usados para nos condenar. Deus mantém um registro de nossas obras para que nos recompense quando Jesus vier, mas não mantém um registro de nossos pecados.
Foi justificado pela graça e não pela lei (w. 9-17). Como vimos, os judeus vangloriavam-se de sua circuncisão e da Lei. A fim de um judeu ser justificado diante de Deus, deveria ser circuncidado e obedecer à Lei. Em Romanos 2:12-29, Paulo já havia deixado clara a necessidade de uma obediência interior à Lei e de uma "circuncisão do coração". A mera observância exterior jamais salvará o pecador perdido.
No entanto, Abraão foi declarado justo quando ainda era incircunciso. Do ponto de vista dos judeus, nessa ocasião Abraão ainda era um gentio. O patriarca estava com 99 anos de idade quando foi circuncidado (Gn 17:23-27), ou seja, mais de catorze anos depois dos acontecimentos relatados em Gênesis 15: A conclusão é óbvia: a circuncisão não tem qualquer relação com a justificação.
Qual era, então, a finalidade da circuncisão? Era um sinal e um selo (Rm 4:11). Como sinal, era evidência de que o indivíduo pertencia a Deus e cria em suas promessas. Como selo, lembrava que Deus havia dado sua palavra e a cumpriria. Os cristãos são selados pelo Espírito Santo (Ef 1:13,14). Também passaram por uma circuncisão espiritual do coração (Cl 2:10-12), não apenas uma pequena cirurgia física, mas sim a remoção da antiga natureza peia morte e ressurreição de Cristo. A circuncisão não foi um acréscimo à salvação de Abraão, apenas uma forma de testemunhá-la.
Mas Abraão também foi justificado antes de a Lei ser dada ao povo de Israel, e é esse fato que Paulo discute em Romanos 4:13-17: A palavra-chave nessa passagem é "promessa". Abraão foi justificado por crer na promessa de Deus, não por obedecer à Lei de Deus, pois Deus ainda não havia dado a Lei por meio de Moisés. A promessa a Abraão foi dada inteiramente pela graça. Abraão não a merecia, nem se esforçou para obtê-la. O mesmo acontece hoje, pois Deus justifica os ímpios por crerem em sua promessa, não por obedecerem à sua Lei. A Lei não foi dada para salvar as pessoas, mas para lhes mostrar que precisavam ser salvas (Rm 4:15).
O fato de Abraão ter sido justificado pela graça, não pela Lei, comprova que a salvação é para todos os homens. Abraão é o pai de todos os que creem, sejam eles judeus ou gentios (Rm 4:16; Gl 3:7, 29). Em vez de os judeus se queixarem que Abraão não havia sido salvo pela Lei, deveriam se regozijar de que a salvação de Deus encontra-se disponível a todos os homens e que Abraão tem uma família espiritual (todos os que creem verdadeiramente), bem como uma família física (a nação de Israel). Paulo considerou esse fato um cumprimento de Gênesis 1 7:5: "porque por pai de numerosas nações te constituí".
Foi justificado pelo poder da ressurreição, não por esforço humano (w. 18-25). Estes versículos expandem as palavras de Romanos 4:1 7, "que vivifica os mortos". Paulo considera o rejuvenescimento físico de Abraão um retrato da ressurreição dentre os mortos e, em seguida, o associa à ressurreição de Cristo.
Um dos motivos pelos quais Deus demorou a dar um filho a Abraão e Sara foi para permitir que perdessem toda sua força natural. Era impensável um homem de 99 anos gerar um filho no ventre de sua esposa de 89 anos! Do ponto de vista reprodutivo, tanto Abraão quanto Sara estavam mortos.
No entanto, Abraão não viveu de acordo com as aparências, mas sim pela fé. Deus promete e cumpre. Tudo o que precisamos fazer é crer. A fé inicial de Abraão relatada em Gênesis 15 não se enfraqueceu ao longo dos anos subsequentes. Em Gênesis 1 7 e 18, Abraão "pela fé, se fortaleceu". Foi essa fé que lhe deu forças para gerar um filho em sua velhice.
A aplicação para a salvação é clara: antes de liberar seu poder salvador, Deus deve esperar até que o pecador esteja "morto" e não seja capaz de fazer coisa alguma por si mesmo. O pecador não pode ser salvo pela graça enquanto acreditar que é forte o suficiente para fazer aquilo que agrada a Deus. Foi quando Abraão reconheceu que estava "morto" que o poder de Deus operou em seu corpo. É quando o pecador reconhece estar espiritualmente morto e incapacitado que Deus pode salvá-lo.
Por causa da ressurreição de Jesus Cristo, o evangelho "é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê" (Rm 1:16). Romanos 4:24 e 10:9, 10 são paralelos. Jesus Cristo "foi entregue para morrer por nossas transgressões e ressurreto para nossa justificação" (Rm 4:25, tradução literal). Isso significa que a ressurreição de Cristo comprova que Deus aceitou o sacrifício de seu Filho e que, agora, os pecadores podem ser justificados sem que Deus quebre sua própria Lei nem contrarie sua própria natureza.
A chave, evidentemente, é "a nós que cremos" (Rm 4:24). Encontramos mais de sessenta referências à fé ou à incredulidade na Epístola aos Romanos. O poder salvador de Deus é experimentado por aqueles que creem em Cristo (Rm 1:16). Sua justiça é concedida aos que creem (Rm 3:22).
Somos justificados pela fé (Rm 5:1). O objeto da nossa fé é Jesus Cristo, que morreu por nós e ressuscitou. Todos esses fatos tornam a fé de Abraão ainda mais maravilhosa. Ele não tinha uma Bíblia para ler; apenas a simples promessa de Deus. Estava quase sozinho em sua fé, cercado de pagãos incrédulos. Não poderia olhar para trás e ver uma longa história de fé; na verdade, ajudava a escrever essa história. No entanto, Abraão creu em Deus. Hoje em dia, as pessoas têm a Bíblia completa para ler e estudar. Têm a comunhão da igreja e podem inspirar-se em séculos de fé registrados na história da Igreja e nas Escrituras. Ainda assim, se recusam a crer!
Harry Ironside, que durante dezoito anos pastoreou a igreja Moody em Chicago, contava a história de uma visita que havia feito a uma Escola Bíblica Dominical enquanto estava em férias.
O professor perguntou:
- Como as pessoas eram salvas no Antigo Testamento?
Depois de uma pausa, um homem respondeu:
- Guardando a Lei.
- Isso mesmo - disse o professor.
Mas Ironside interrompeu:
- Em minha Bíblia está escrito que ninguém será justificado por obras da Lei.
Um tanto sem graça, o professor perguntou:
- Alguém mais tem uma sugestão?
- Levando sacrifícios a Deus - outro aluno respondeu.
- Muito bem! - disse o professor, e tentou prosseguir a aula.
Mas Ironside o interrompeu novamente:
- Em minha Bíblia está escrito que é impossível que o sangue de touros e de bodes remova pecados.
A essa altura, o professor despreparado viu que o visitante sabia mais sobre a Bíblia do que ele e falou:
-Então, por que o senhor não explica como as pessoas eram salvas no Antigo Testamento?
E foi o que Ironside fez, dizendo-lhes que eram salvas pela fé, da mesma forma como nos dias de hoje! Hebreus 11 usa a expressão "pela fé" vinte e uma vezes.
O judeu pode ser considerado, fisicamente, filho de Abraão; mas será que é filho espiritual de Abraão? Abraão é o pai de todos os que creem em Jesus Cristo e que são justificados pela fé. O gentio jamais pode ser descendente natural de Abraão, mas pode ser um de seus descendentes espirituais. "A fé [em Deus] foi imputada a Abraão para justiça."
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